terça-feira, 29 de abril de 2025

nota 1

 era para ser algo ligeiro e de pouca profundidade, já havia me conformado com as pequenas notas de cravo da vida, já havia me acostumado com aquele gostinho de quero mais, depois da primeira xícara de chá. talvez pelo doce, a canela.

  pois assim seria, se tudo fosse fútil e controlável. eu fui deixando-me ficar e quando dei por mim estava aqui do outro lado do oceano. e ainda bem que o fiz. e porque não?

  a zona de conforto já havia sido imposta há alguns anos, depois de eu ter tentado me fazer amada e desejada, e cada vez mais deixando de ser quem eu era, e de certa forma, vendo meu ímpeto juvenil se perder nas novas dobras do tempo e de minha pele, cada vez mais cansada, embaixo daqueles sorrisos falsos e superficiais.

  "uma jovem senhora", foi assim que ele me chamou peça primeira vez, me senti uma velha, mas com um sorriso enorme do lado contrário do oceano atlântico, hoje posso dizer: "do lado errado do atlântico". e eu não estava mesmo esperando por nada, por ninguém, porque tudo já estava tão cinza, que até um dia claro de verão, no Brasil, me pareceria um dia chuvoso na Inglaterra.

  essa jovem senhora, coberta por terra e tantas outras falácias de uma cultura que mata as mulheres de várias formas, uma cultura que apaga as mulheres de meia idade, em meu país. essa mesma jovem senhora, despida de qualquer pudor que me impuseram desde muito jovem estava nua, estava despida de qualquer ensinamento antigo, de crenças limitantes, e de tudo que não me servia mais.

  não me via fazia muito tempo, só olhava para aquela casca de mim, para aquilo que me enterrou, para aquela sombra que me tornara com o tempo, com as perdas, com a não compreensão de tudo que me cercava desde então.

  ver o outros, observar os outros e aqueles comportamentos erráticos com relação à vida, com relação às imposições sociais, só me fez entender que o casulo que me protegia de tudo também me impedia de viver a liberdade de ser quem sou.

  a casa, a biblioteca, a coleção de linhas, os gatos, o trabalho, a cena social escassa e a clausura autoimposta já não me serviam mais. o silêncio de todas as palavras trancafiadas em algum recanto dessa alma cansada de gritar, finalmente voltou a ressoar e me impulsiona agora ao exterior. e me deparar com isso é tão libertador quanto assustador. ser e ser quem sou e me deparar com a realidade de que eu nunca mudei e que apenas me silenciei, me fingi de morta para sobreviver.

  e me fingir de morta, até ali, nunca havia sido uma opção e que de alguma forma ela se impôs para o bem ou para o mal. não sei exatamente onde isso tudo me leva, mas o sentimento é do flutuar no vazio, ou melhor dizendo no excesso de possibilidades. e não falo aqui da liberdade burguesa de trocar as cortinas da casa, falo de um processo longo e doloroso de se retirar de um cenário onde não me sentia a protagonista de minha própria existência e me lançar ao desconhecido.

  um desconhecido que me rasga pela incerteza e me atravessa pela didática vida que se impõe, mas não é assim que deveria ser sempre?

Nenhum comentário:

Postar um comentário

nota 8

 sou vizinha da última morada de Camões e não tive coragem de visitá-lo. o senhor que há tantos anos me inspirou às primeiras estrofes e cam...