terça-feira, 29 de abril de 2025

nota 2

  hoje acordei me perguntando quantas faces minhas já encarei nos espelhos e quantas iguais a mim vivem nesse mundo de julgamentos e inquisições? "ah, aquela bruxa, aquela doida, aquela que não aprende nunca a lição e a que não se conforma com o que lhe impõem", -  isso porque não veem a que chora, luta e sofre em silêncio, a que engole o medo, e segue adiante sem reclamar. 

  será que estou errada em pensar diferente das pessoas do lugar onde nasci? será que estou errada por querer mais do que a vida me ofereceu até aqui?

  fui sempre vista como "a forte", aquela que serve para lhe emprestar dinheiro, para lhe dar colo, lhe dar amor e tudo de mais precioso que tenho, sem negar-lhe nada, absolutamente nada, mas também como aquela que não pode demonstrar fragilidade para não ser taxada de vulnerável, nem tampouco fraca.

  "quem cuida de quem cuida? você mesma" - , digo pra mim todas as manhãs para minha imagem refletida  no espelho. até esse momento eu jamais havia me sentido tão amparada, é um sentimento novo pra mim. e mesmo assim tão amparada não me permito desfrutar, é um sentimento de não merecimento, de estranhamento até. ainda não me sinto confortável sendo cuidada, não sei explicar.

  talvez me falte humildade, talvez me falte confiança em mim, talvez seja medo de me ferir mais uma vez, não sei bem como expressar tal vulnerabilidade, ou simplesmente eu não aprendi a me desarmar.

  fui criada de uma forma onde as meninas podiam falar, mas nem tanto. as meninas podiam mostrar seus desejos, mas nem tanto. as moças de boa família não falavam palavrões e nem se davam ao desfrute. as mulheres casadas tinham que se calar para os maridos e não podiam contrariá-los...

  ou seja, seja morna, não muito fria nem muito quente, seja a medida do que lhe permitirem ser, dê mais do que recebe e não reclame disso porque foi feita para servir, não para ser escrava, mas para servir. tem que ser boa de cama, mesa e saber recepcionar bem sem se exaltar ou atravessar a masculinidade de seu cônjuge. 

  não servi para ser boa esposa, falava verdades demais, fui esquentada demais, tenho cabelo nas ventas e não me calo se me sinto insultada ou desrespeitada, dou conforme recebo e se não recebo não dou. a conta comigo tem que fechar de alguma forma e é assim que dito a minha própria cartilha. a solidão me caiu bem por anos. não esperava nada mais dos homens e nem da humanidade, mas fui surpreendida. e que bom que a vida nos presenteia, raramente, mas presenteia.

nota 1

 era para ser algo ligeiro e de pouca profundidade, já havia me conformado com as pequenas notas de cravo da vida, já havia me acostumado com aquele gostinho de quero mais, depois da primeira xícara de chá. talvez pelo doce, a canela.

  pois assim seria, se tudo fosse fútil e controlável. eu fui deixando-me ficar e quando dei por mim estava aqui do outro lado do oceano. e ainda bem que o fiz. e porque não?

  a zona de conforto já havia sido imposta há alguns anos, depois de eu ter tentado me fazer amada e desejada, e cada vez mais deixando de ser quem eu era, e de certa forma, vendo meu ímpeto juvenil se perder nas novas dobras do tempo e de minha pele, cada vez mais cansada, embaixo daqueles sorrisos falsos e superficiais.

  "uma jovem senhora", foi assim que ele me chamou peça primeira vez, me senti uma velha, mas com um sorriso enorme do lado contrário do oceano atlântico, hoje posso dizer: "do lado errado do atlântico". e eu não estava mesmo esperando por nada, por ninguém, porque tudo já estava tão cinza, que até um dia claro de verão, no Brasil, me pareceria um dia chuvoso na Inglaterra.

  essa jovem senhora, coberta por terra e tantas outras falácias de uma cultura que mata as mulheres de várias formas, uma cultura que apaga as mulheres de meia idade, em meu país. essa mesma jovem senhora, despida de qualquer pudor que me impuseram desde muito jovem estava nua, estava despida de qualquer ensinamento antigo, de crenças limitantes, e de tudo que não me servia mais.

  não me via fazia muito tempo, só olhava para aquela casca de mim, para aquilo que me enterrou, para aquela sombra que me tornara com o tempo, com as perdas, com a não compreensão de tudo que me cercava desde então.

  ver o outros, observar os outros e aqueles comportamentos erráticos com relação à vida, com relação às imposições sociais, só me fez entender que o casulo que me protegia de tudo também me impedia de viver a liberdade de ser quem sou.

  a casa, a biblioteca, a coleção de linhas, os gatos, o trabalho, a cena social escassa e a clausura autoimposta já não me serviam mais. o silêncio de todas as palavras trancafiadas em algum recanto dessa alma cansada de gritar, finalmente voltou a ressoar e me impulsiona agora ao exterior. e me deparar com isso é tão libertador quanto assustador. ser e ser quem sou e me deparar com a realidade de que eu nunca mudei e que apenas me silenciei, me fingi de morta para sobreviver.

  e me fingir de morta, até ali, nunca havia sido uma opção e que de alguma forma ela se impôs para o bem ou para o mal. não sei exatamente onde isso tudo me leva, mas o sentimento é do flutuar no vazio, ou melhor dizendo no excesso de possibilidades. e não falo aqui da liberdade burguesa de trocar as cortinas da casa, falo de um processo longo e doloroso de se retirar de um cenário onde não me sentia a protagonista de minha própria existência e me lançar ao desconhecido.

  um desconhecido que me rasga pela incerteza e me atravessa pela didática vida que se impõe, mas não é assim que deveria ser sempre?

sexta-feira, 18 de abril de 2025

Lisboa chora...

 há três dias Lisboa chora

e se derrama sem dramas

sobre as águas do Tejo

e ele a recebe inteiro...


há uma semana não durmo

vivendo o que sonhei por anos

nem o Tejo, nem Lisboa sabem

dos meus segredos...


alheios a mim, ambos seguem

teus cursos em silêncio

sem alardes e sem reclamar


há alguma ternura descontente

às margens daqueles que partem

sem despedidas ou saudades


há quem diga que não voltam

mas mesmo os mortos tendem

a boiar d'outro lado do rio.

sábado, 12 de abril de 2025

travessias

   a história de uma jornada nunca é a mesma independente dos processos necessários para estar aqui e agora. foram tantas escolhas, tantas quedas, tantos desalinhos que o acalanto de estar e permanecer-me é veramente incrível. a viagem foi longa e cheia de turbulência, sem contar as sobre o atlântico, e tudo isso na esperança de avistar o Tejo, e enfim, ele está correndo e vertendo-se, ali logo ao lado. 

   meu amado Tejo, de tantos fados, malfadados, fados... tão lindos fados...

   tens olhos, nariz e boca, mesmo sendo uma entidade em mim, um ser mítico e mantenedor de todas as palavras já proferidas até aqui e ousaria dizer que todos os meus caminhos me trouxeram até aqui. e isso não é apenas uma canção de amor, ou um louvor, ou um clamor desses que caem no esquecimento de quem os lê por uma só vez, em voz alta como oração. 

   declama-me e inflama-me e de certa forma sempre fui-te, só e apena meu, Tejo.

nota 8

 sou vizinha da última morada de Camões e não tive coragem de visitá-lo. o senhor que há tantos anos me inspirou às primeiras estrofes e cam...